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Cultura Justiça Vitória da Conquista

Liberdade de expressão artística: Membro da comissão de Direito Constitucional da OAB divulga nota sobre “Tigrão Gostoso”

Ricardo Pereira

Em sua página no facebook, O advogado e professor universitário Ricardo Pereira, membro da comissão de Direito Constitucional da OAB e especialista em análise do discurso, publicou uma nota com enfoque nas polêmicas criadas em cima do clipe “Tigrão Gostoso”, da banda de pagode/arrocha conquistense Abrakadabra. Confira o texto na íntegra:

NOTA EM DEFESA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA
Art. 5º, inciso IX, da Constituição Federal de 1988 – “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

A banda Abrakadabra de Vitória da Conquista-BA está sofrendo, nas últimas semanas, uma série de ataques e acusações de que estariam incentivando e/ou fazendo apologia ao crime de estupro em razão do lançamento do clipe da música “Tigrão Gostoso”. Levando em consideração que os argumentos envolvem o delicado tema da liberdade de expressão em nosso país, decidi redigir esta nota que tem por intuito não defender o gênero musical ou a sensualidade das coreografias que estão ligadas a algumas músicas baianas, mas alertar sobre o perigo de críticas destituídas de fundamentação teórica, que põem em risco as nossas liberdades e garantias individuais. O texto é estruturado em tópicos.

1º) LIBERDADE DE EXPRESSÃO – O Brasil viveu anos de terror com a Ditadura Militar. Este momento, em seu apogeu histórico, representou a impossibilidade de se expressar política e artisticamente em todo o território nacional. Foram anos sombrios em que inúmeros artistas foram exilados sob a acusação de incitar a subversão política ao regime militar. Outros tinham que contar com a autorização (ou não do governo) para iniciarem o processo de publicação e divulgação de obras. Tempos difíceis… Em razão disso, a Constituição da República de 1988, consagrou o seu art. 5º, inciso IX, à defesa da liberdade de expressão “da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” como forma de garantir a livre manifestação das idéias por cada um dos cidadãos. Daí se extrai que a publicação do videoclipe “Tigrão Gostoso” não ofende a nenhuma lei vigente no nosso país.


2º) INEXISTÊNCIA DE INCITAÇÃO OU APOLOGIA AO ESTUPRO – Após alguns dias analisando o videoclipe pude perceber que o clima de violência que muitos viram nas cenas de invasão do apartamento se deve não à letra (já que esta como muitas músicas de axé e pagode baianos não possuem muito enredo nem muitas palavras), mas à temática do “terror”. Percebam que o vídeo se inicia com um pesadelo: a jovem dorme e sonha com uma perseguição. Ao acordar os atores já estão dançando dentro do elevador à sua procura. Notem que, de maneira rápida, pude fazer relação com pelo menos três clássicos das histórias de terror: o filme “A hora do pesadelo” (onde o personagem principal “Freddy Krueger” sai dos pesadelos para perseguir as suas vítimas); o clássico da literatura infantil “Chapeuzinho vermelho” onde o lobo-mau persegue uma menina [para comer]; e, finalmente, o outro clássico infantil “Os três porquinhos”, onde o lobo bate à porta das suas vítimas, arrombando-as em seguida. Com efeito, após muito refletir verifiquei que esta se trata da interpretação mais possível, já que os jovens “surgem” no elevador sem prévia cena de invasão ou arrombamento, mostrando com isso que aparecem no videoclipe mais como “assombrações” do que como qualquer outra coisa. A relação entre estas histórias (e dentre elas de forma mais idêntica o enredo do “A hora do pesadelo”) nos autorizam dizer que se trata de um enredo de filme de terror. E aí não podemos esquecer, sob pena de estarmos denunciando um limitado estado de consciência artística, que o videoclipe se trata de uma obra de ficção, onde a narrativa é completamente imaginária. Eis a razão porque fazem sentido as pouquíssimas palavras da “letra da música” falarem de “pegar”, “hora do espanto”, “machucar”, “toma em cima, embaixo”, etc.
Algumas críticas dirigidas à música, como, por exemplo a da repórter Jarid Arraes (disponível na internet), afirmam que: “A música é indubitavelmente sobre forçar o ato sexual, ou seja, sobre estupro. Uma das coisas mais preocupantes é a naturalidade da produção com relação a música, tanto dos próprios músicos quanto de seus patrocinadores. Enquanto sorriem e rebolam, os membros da banda afirmam que consideram o estupro algo normal, tão natural que pode ser um tema divertido para entretenimento e lazer”. Contudo, seguro da análise que ora empreendo, eu desafio qualquer pessoa a demonstrar por análise literária fundamentada (já que a música em tese possui uma letra, uma poesia), e não por mera conjectura preconcebida que a letra faça referência expressa a sexo, partes genitais, práticas libidinosas, etc.

3º) MÚSICA BAIANA – UMA QUESTÃO DE PRECONCEITO – Algumas músicas e bandas baianas se consagraram pela estreita relação que tem com a dança sensual e muitas vezes eróticas. No caso do “Tigrão Gostoso” da banda Abrakadabra, vemos que a letra (como a maioria das músicas desta espécie) não possui um enredo muito complexo, já que são MÚSICAS FEITAS PARA DANÇAR e não para ficar parado, junto com os amigos, diante da TV, por horas a fio, “analisando” a fundo a produção, como se acredita poder fazer com uma ópera de Mozart, um filme de Fellini ou uma música de Elomar, por exemplo. Aqui não há espaço para discutir “melhor ou pior”, já que vivemos em uma democracia e tudo é uma questão de gosto. Por conseguinte, desta condição de música para dançar, extrai-se que o “Tigrão Gostoso” só ganha este efeito sensual ou erótico por causa da coreografia dos atores/dançarinos que aparecem no vídeo em poses provocantes. Só com a letra este efeito não é produzido. Mas, mesmo assim, não haveria que se falar em estupro (encenação ou incitação do ato) já que, além das considerações acima formuladas (relação com histórias de terror) e por se tratar de uma OBRA DE FICÇÃO, ao final da letra a jovem exclama seu consentimento: “meu tigrão é uma delícia”, fazendo estremecer o principal argumento dos opositores da banda: a violência. Ainda, ante o elemento “sensualizador” ou “erotizador” trazido pela coreografia, não ignoro que o ato de forçar a porta pode trazer à baila uma discussão sobre a “pegada”, metáfora utilizada para descrever, não a violência no ato sexual (beijar alguém à força, por exemplo, o que é algo criminoso e digno de repúdio), mas a uma certa atitude do homem em face da conquista, elemento este que se caracteriza justamente como oposição a uma excessiva passividade masculina. A carga semântica do termo “pegada”, no entanto, não se confunde com o cometimento de estupro. Uma coisa é totalmente diferente da outra. Esta é uma interpretação possível, que me permito fazer.
No mais, lamento muitíssimo que alguns representantes de movimentos sociais, repórteres e políticos estejam realizando explicitamente uma conexão entre o conteúdo de “Tigrão Gostoso” e o episódio da banda New Hit, onde os integrantes foram acusados de estupro de duas jovens. Caros senhores, os senhores protestam tanto contra fantasmas como a violência ou a exclusão, que acabaram por não se dar conta (prefiro pensar assim) de que vitimaram de “preconceito” todos os integrantes da Abrakadabra. Quer dizer agora que todas as bandas de pagode ou axé, por estarem vinculadas à dança, são compostas por desequilibrados sexuais ou potenciais criminosos do sexo? Será que o que está chocando os senhores não seria o fato de que o nosso corpo social está acostumado a ver mulheres peladas na TV e nas capas de revistas, as musas seminuas nas transmissões do carnaval do Rio de Janeiro e a Globeleza com as suas partes apenas cobertas de tinta e purpurina (em qualquer horário da programação daquele canal), mas se escandalizou ao ver a coreografia da banda Abrakadabra? São indagações que devemos fazer, já que assistindo ao vídeo, não notei muita distância entre os movimentos de Tigrão Gostoso e aqueles executados na década de 90 pelas dançarinas do Grupo Tchan.
Um amigo meu, nas redes sociais, sem fazer referência a este caso do Tigrão publicou algo interessante: “ Se James Brown fosse nascido em algum morro carioca e a música Sex Machine [tradução: máquina do sexo] fosse em português, será que a entojada elite conhecedora e crítica musical de araque iria dizer que o que ele faz não é música?”. Acredito que isso se aplica aqui também a este nosso caso.

4º) LIBERDADE ARTÍSTICA X APOLOGIA. Algumas pessoas entendem de maneira, destarte, questionável, que a manifestação artística não é livre. Defendem que a obra de arte deve ser panfletária de uma certa concepção política ou filosófica dominante, e que, diante disso, algumas devem ter sua circulação permitida e outras proibidas. Este “panfletarismo”, se é possível chamar assim, é algo igualmente odioso do ponto de vista político. Em nome da “arte certa” ou da “arte errada”, verdadeiras atrocidades foram cometidas contra o patrimônio cultural e intelectual da humanidade: foi assim no Comunismo (onde a arte deveria ser propaganda do regime), foi assim no Nazismo Alemão (onde a arte deveria ser propaganda do regime) e foi assim também na Ditadura Militar brasileira (onde a arte não podia inspirar oposição/resistência ao poder instituído). Lamentáveis episódios da história do homem, onde grandes obras foram destruídas e artistas perseguidos porque não se enquadravam dentro do julgamento unilateral de um grupo político no poder. Não queremos a censura de volta, queremos?
Reflexão mais atenta merece o tema da apologia. O termo apologia pode ser definido como discurso para justificar ou defender algo, um elogio. Será que a banda faz tal defesa do estupro? Será que podemos de fato dizer que há um elogio ao estupro no bem humorado vídeo? Penso que não. A arte vive da representações de coisas, de cenas, de sentimentos, etc. Acho difícil alguém representar um jardim sem recorrer a elementos como flores (por mais subjetiva que possa parecer a expressão artística). Se alguém quer representar uma cena de guerra, acho difícil não recorrer a elementos disformes, armas e destroços (ver o “guernica” de Picasso). Apesar de entender que o videoclipe “Tigrão Gostoso” não veicule uma apologia ao crime, tenho que considerar que se algum artista quiser representar artisticamente uma cena de estupro (para fins de apreciação estética já que a obra de arte nem sempre é para “nos deixar em paz”, às vezes o seu objetivo é “chocar” mesmo), ainda assim não poderá ser acusada de estar fazendo qualquer apologia ou incitação ao referido crime. Temos que ter este discernimento. Caso contrário, se insistirmos com esta manca reflexão, correremos o risco de estar por analogia, condenando ao apagamento: a ópera “Carmem” de Bizet, já que narra uma história da assassinato passional, onde, na última cena o homem assassina a amante; o romance “Os sofrimentos do Jovem Werther” de Goethe, que narra o desenrolar da história de um rapaz que, devido a frustrações amorosas, comete suicídio; a música de Chico Buarque que diz “joga pedra na Geni, ela é boa de apanhar, ela é feita pra cuspir”… Cometeremos o erro de julgar que estes clássicos da música e literatura mundial estão fazendo apologia ao homicídio, à violência contra a mulher ou ao suicídio, somente porque abordam artisticamente o assunto? Espero que não… Bom, e se é verdade que lá, eles (grandes nomes), não incitam à prática de crimes, porque deveríamos imaginar que bandas de pagode e axé o fazem? É por causa do público ao qual se dirigem? Esse povo, o povão, deve ouvir músicas de caráter pedagógico, que os ensinem a não se portar como ralé? Em que sentido essa doutrinação deveria se dar? Não seria isso preconceito? Porque devo achar, por exemplo, que o filme brasileiro “Tropa de Elite”, por conter cenas de violência, estaria incentivando a violência social? Esta é uma questão a se levar em consideração, apesar de, repita-se, continuar insistindo que não vejo nenhuma apologia ao estupro no vídeo em questão.
5º) FRUIÇÃO ESTÉTICA x LIBERDADE E DEMOCRACIA – Muitos tem dirigido as suas críticas ao videoclipe “Tigrão Gostoso” por que o consideram um subproduto cultural. Alguns se referem como lixo musical. Mas aí também nada se pode fazer, já que a fruição estética é uma questão de gosto pessoal. Destarte, o que me leva a comprar um disco ou ouvir uma rádio é de natureza íntima e pessoal e não pode ser imposto. Viver em democracia impõe o “respeito ao diferente”. Se eu não gosto de uma determinada prática social, de um movimento artístico, se aquela religião não me agrada, se aquela roupa não me apraz, ótimo: não coaduno com aquela determinada prática, não escuto aquela música, não frequento aquela igreja (ou terreiro, por exemplo) e não compro aquela roupa. É tudo muito simples… Contudo, uma parcela da sociedade acredita que a justiça social decorre da imposição do meu modo de viver a todos. É assim que nasce a violência contra os gays, ofensa à liberdade religiosa, etc. Eu consigo ver a intolerância contra o grupo Abrakadabra e outras bandas de axé e pagode quando presencio a tentativa de silenciamento de uma forma de expressão artística. O axé e o pagode o são, ainda que eu não goste desses ritmos ou não tenha o molejo necessário para executar as suas coreografias. Mas daí a querer interditar/proibir esta prática porque não se alinha com o meu gosto, aí já é demais. O remédio para músicas que não gosto, para programas como BBB da Globo, ou para novelas frívolas e [não raro] eróticas chama-se: controle remoto. Existem outros grupos musicais, outras bandas; vá ver filmes cults, vá ler um livro, mas não queira impor o seu jeito de ver as coisas ao restante da população ou às minorias. Outro dia vi nas redes sociais uma publicação interessante, que mexia com o nosso senso de respeito às diferenças, com a nossa consciência de que vivemos numa democracia. Dizia ela: “Então você quer que ensinem Religião nas escolas… Todas as religiões ou só a sua?”. Essa provocação tem que ser feita todos os dias a nós por nós mesmos, no sentido de nos mantermos vigilantes contra o fantasma da intolerância, da exclusão, da segregação. É claro que tudo tem limite: logo, não é porque vivemos numa democracia onde a manifestação filosófica e política é livre que o ordenamento jurídico deve aceitar/acolher a existência de um partido nazista no Brasil, por exemplo. Isto em virtude da clara mensagem de violência e desrespeito à vida e aos seres humanos que tal linha política veicula e defende. Assim, não posso ser a favor de quem defenda uma prática religiosa onde se sacrificam seres humanos, por exemplo, mas sou forçado a reconhecer que Católicos, Kardecistas, Protestantes, e integrantes de religiões de matriz africana devem conviver em paz, cultivando o respeito às suas diferenças recíprocas. Crer que todos devem pensar de maneira igual é um equívoco, tornaria a vida feia e sem sentido. Daria margem à violência e supressão de minorias (exemplos históricos não faltam). Então, lembre-se, controle remoto.
6º) RISCOS DA CENSURA – Os pedidos de proibição da circulação da música e do clipe em questão surgem com o fantasma da censura, conforme abordamos acima. O risco é o da utilização da arte para doutrinação política e supressão de liberdades individuais consagradas pela Constituição Federal de 1988. Tenho que ser a favor da liberdade, porque imaginar tal cena de vigília da produção artística me assusta como cidadão. Gostaria de dar um exemplo: às vezes me pego conjecturando sobre os argumentos político-filosóficos de determinados grupos religiosos e do modo como demonizam determinados costumes, roupas, livros, músicas, etc. e fico aterrorizado com a possibilidade de tais grupos ocuparem a direção política do país no sentido de impor a censura religiosa a todos os demais habitantes do território nacional. Seria chocante, não? Afastemos, pois, por uma questão de princípio o risco de que tal espécie de vigília do pensamento ocorra. Aos intelectuais que se arvoraram em argumentos políticos e filosóficos frágeis para querer impor a proibição ao “Tigrão Gostoso”, eu peço que releiam ou leiam (se ainda não tiverem lido) o livro “1984” de George Orwell, onde o autor inglês coloca metaforicamente os riscos de uma sociedade totalitária e controlada (como se a nossa já não o fosse suficientemente…).
Para encerrar, gostaria de compartilhar que, de tanto ver, ouvir e falar sobre o “Tigrão Gostoso” fiquei com vontade de adquirir uma fantasia para brincar neste carnaval… Pode ser de Tigre? Ninguém vai me prender? Juro que ouvi dizer que aqui no Brasil algumas pessoas estavam sendo detidas pela polícia, em manifestações políticas contra o governo, por estarem de posse de vinagre… Isso procede? Afirmei, outro dia, a um dos integrantes da Banda Abrakadabra, que talvez jamais compraria um disco deles, mas que ele ficasse em paz ao tocar a sua música. Já estou mudando de idéia: se quiserem me dar um CD eu estou aceitando.

Fica autorizado compartilhamento nas redes sociais, inclusive pelos integrantes da Banda Abrakadabra e seus fãs em defesa da LIBERDADE DA EXPRESSÃO ARTÍSTICA.

Vitória da Conquista-BA., 27/01/2014.