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Crise do coronavírus: homem passa 24 horas na fila para requisitar benefício de R$ 600

Mais de 300 pessoas se aglomeravam ontem de manhã na fila da Receita Federal em São Gonçalo, para tentar regularizar pendências no CP e requisitar a ajuda de R$ 600 prometida pelo governo federal durante a pandemia de coronavírus. Rosivaldo Brigido dos Santos, de 48 anos, era uma delas. Ele dormiu na porta da unidade para tentar resolver pendência com seu documento. Com um pai de 92 anos em casa, ele diz já faltar comida para a família. Por isso, suportou 24 horas na fila.

— Virei a noite para acertar o meu documento e fazer a inscrição. Tive medo, porque você não sabe se alguém vai fazer alguma covardia. E, hoje, eu consegui a minha vitória. Esse benefício vai ajudar muito na minha casa. Vamos comprar o gás, o arroz, o feijão – contou.

Também estava na fila Tamires Reis da Silva, de 27 anos. Desempregada há quatro, ela sobrevivia fazendo faxinas, mas foi dispensada de todas as casas em que trabalhava por conta da pandemia de coronavírus. Sem dinheiro, viu a comida em casa rarear e, diante da ameaça concreta da fome, foi ao posto da Receita Federal em São Gonçalo, onde também madrugou.

Tamires, de 27 anos, foi regularizar o CPF para receber o benefício e comprar comida para as filhas

Tamires, de 27 anos, foi regularizar o CPF para receber o benefício e comprar comida para as filhas Foto: Roberto Moreyra / Extra

Em outros pontos do Rio, também havia aglomeração de pessoas em busca de ajuda, como o pedreiro Raimundo Nonato de Souza, que dormiu diante de uma unidade da Receita em Madureira. No Riocentro, a fila de quem tem fome reuniu cerca de 300 taxistas auxiliares, que, quase sem corrridas, buscaram cestas básicas distribuídas pela prefeitura. O movimento em dez postos da Guarda Municipal onde havia doações para ambulantes também foi grande.

Fila em frente à unidade da Receita Federal em Madureira, que começou um dia antes
Fila em frente à unidade da Receita Federal em Madureira, que começou um dia antes Foto: Gabriel Monteiro / Extra

Do trabalho para uma noite na fila

Com as mãos ainda sujas de tinta de um serviço que havia feito na véspera, Raimundo Nonato contou que chegou ao posto da Receita às 19h de terça-feira. Improvisou um travesseiro com a mochila e uma cama com papelões. Pela manhã, foi até uma feirinha próxima, comprou uma penca de bananas, alguns pãezinhos e dois sucos. Dividiu tudo com quem estava na mesma situação de penúria que ele:

— Tem muita gente nessa fila numa situação até pior que a minha. Fui educado a ajudar o próximo. Não podia ficar parado vendo tanta gente com fome como eu estava — disse ele, que, flagrado no ato de solidariedade por uma reportagem da Rede Globo viu seu exemplo se multiplicar.

Raimundo Nonato virou a noite e conseguiu regularizar o CPF. Empresário soube de sua história e ofereceu emprego

Raimundo Nonato virou a noite e conseguiu regularizar o CPF. Empresário soube de sua história e ofereceu emprego Foto: Gabriel Monteiro / Extra

Comovido com a atitude do pedreiro, o capitão da PM Jorge Luiz Portella, de 41 anos, resolveu ajudar.

— Quando vi a história do seu Raimundo na televisão, liguei para meus filhos e para a minha avó e pedi que fizessem café e separassem biscoitos e refrigerantes. Fui com minha filha entregar os mantimentos a seu Raimundo. Acabamos ajudando cerca de 200 pessoas na fila.

Um empresário também se comoveu e procurou Raimundo para oferecer um emprego.

Em São Gonçalo, Tamires recebeu ajuda ontem de voluntários que dão comida a pessoas a situação de rua. Ela comeu a marmita e disse já planejar o que vai fazer quando tiver os R$ 600 liberados: comprar leite para as duas filhas, de 5 e 7 anos.

— Vou comprar comida e leite para elas. Parece pouco, mas para quem não tem nada é muito — disse a jovem de 27 anos, lamentando a situação. — Já falta comida dentro de casa para as meninas. As pequenas não sabem o que é uma fruta há meses. Não temo como comprar o básico. Quando elas pedem eu digo que vou providenciar. Mas, infelizmente não tenho como. E isso dói.

A Receita Federal disse que trabalha “incessantemente na regularização de CPFs” e que “grande parte das pessoas que ainda estão nas filas em nossas unidades de atendimento não têm mais nenhuma pendência com os seus CPFs. Mesmo assim, em muitos casos, o aplicativo Auxílio Emergencial da Caixa continua avisando a esses cidadãos para procurarem uma agência da Receita Federal. As filas devem reduzir a partir do momento em que as regularizações feitas nos últimos dias passarem a constar nos sistemas”.

No Riocentro, o taxista auxiliar Jefferson Silva dos Santos aguardou para pegar uma das 1.200 cestas básicas distribuídas ontem pela prefeitura. Apesar de estar passando por dificuldades, com a grande redução de corridas, ele fez questão de ajudar um colega de profissão que está em situação ainda mais dramática.

Prefeitura entrega cestas básicas para motoristas de táxi no Riocentro
Prefeitura entrega cestas básicas para motoristas de táxi no Riocentro Foto: Gabriel de Paiva / Extra

— O dono do carro em que o meu colega trabalhava, pagando diária, retirou o veículo dele e guardou na garagem. Não foi sensível e deixou esse colega em situação desesperadora. Eu e mais três amigos fizemos um rateio e demos um pouco de dinheiro para ele. Além disso, retiramos produtos de nossas cestas básicas para aumentar a dele, que não tem mais recursos para manter a família. Se nós não ajudarmos uns aos outros ninguém fará — disse Jefferson, que teve a diária que paga reduzida de R$ 110 para R$ 45 e passou a dividir seus lucros ao meio com o dono do carro.

Ajuda a 6 mil ambulantes

A ajuda a 6 mil ambulantes cadastrados na prefeitura começou ontem em dez postos da Guarda Municipal para pessoas com iniciais de nome de A a F. Há 20 anos vendendo roupas na Rua da Ajuda, no Centro do Rio, Maria de Lourdes Alves Lima, de 57 anos, disse estar contando os dias que faltam para ter direito a buscar sua cesta básica. Hoje, ela completa um mês e meio sem trabalhar e, sem reservas financeiras, depende da ajuda do Movimento Unido dos Camelôs (Mica). A entidade doou a ela uma cesta básica e uma vizinha emprestou R$ 150 para que ela comprasse mantimentos.

Ambulante recebe cestas básicas distribuídas em unidade da Guarda Municipal na Tijuca
Ambulante recebe cestas básicas distribuídas em unidade da Guarda Municipal na Tijuca Foto: Gabriel de Paiva / Extra

— Nunca vivi uma situação tão complicada como agora. Já não sei o que é leite, legumes e frutas desde o início do distanciamento social. A minha vizinha me emprestou R$ 150 depois que a cesta básica doada pelo movimento acabou. Fui no mercado e comprei um pouco de carne e produtos de limpeza, pois acho muito necessário nesse momento. A comida só vai dar até o fim da semana e eu não sei mais o que fazer.

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