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Mônica Benício, viúva de Marielle, fala sobre novo relacionamento: ‘Não significa uma saída do luto, mas uma parceria na luta’

No dia 14 de março, as mortes de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes completam dois anos. Neste recorte de tempo, para a viúva da vereadora, Mônica Benício, convivem sensações opostas: o “parece que foi ontem” e o “uma eternidade se passou” desde o crime. Cabem ainda uma ferrenha luta para se chegar ao mandante e à motivação do crime, o engajamento até a alma na defesa dos direitos LGBTQ, o combate a qualquer tipo de preconceito e, agora, um novo amor. A nova companheira de Mônica é a cantora carioca Marina Iris, que divide com ela também muitas bandeiras. “Marina é apoio, abrigo e afeto”, diz Mônica, que tem feito postagens em suas redes sociais sobre seu atual momento. Esta semana, a história ganhou outra dimensão. Que fez “quebrar” o WhatsApp tamanho o número de mensagens: “Se no meio de tudo isso, meu relacionamento servir para que outras mulheres possam afirmar seu direito de amar, então a exposição faz algum sentido”. Criada no Méier, bairro da Zona Norte da cidade, Marina é militante desde a adolescência, “uma força da natureza”, como define Mônica. As duas se conheceram há alguns anos, ainda durante a campanha de Marielle. “Ela estava fazendo show na Alemanha e gravou de lá a parte da letra que compôs para incorporar no jingle. Há pouco tempo, nos aproximamos. E desse lugar de profunda admiração por sua trajetória, sua generosidade, seu apoio, sua disposição e sua parceria, surgiu o amor”, conta. Na entrevista a seguir, a viúva de Marielle fala da busca por justiça, do ato político de “ser sapatão”, da patrulha em torno de sua relação e do reencontro com o amor.

Como você vê a grande repercussão em torno de seu novo relacionamento?

Precisamos falar de lesbofobia estrutural. Primeiro eu fui apagada do meu lugar de esposa de Marielle, com quem eu dividia uma casa, uma vida, sonhos, e formava família. Enfrento todos os dias acusações de “viúva midiática”, que deslegitimam o meu lugar de família de Marielle, e que acontece com a maioria das mulheres lésbicas nesse país, que sofrem com violências emocional e patrimonial, entre outras. Eu e Marielle levamos 14 anos para estruturar a nossa relação, entre idas e vindas e inúmeras lesbofobias da sociedade. Por isso, afirmo que nossas famílias existem e elas são plurais e diversas. A exposição essa semana nos meios de comunicação não aconteceu com o nosso consentimento, mas entendo que tenho uma responsabilidade pública e política na luta das mulheres, especialmente das lésbicas, porque foi no movimento de lésbicas que encontrei a maior acolhida e reconheci que onde havia incômodo era lesbofobia. Em entrevistas, costumo dizer que ser sapatão é um ato político e seguirei afirmando as nossas existências e resistências. Por isso, também acho que toda visibilidade conquistada é válida. Ao longo desses dois anos de luta, aprendi também a importância de poder representar de algum modo a lesbianidade em tudo que ela tem de beleza e potência. Se no meio de tudo isso, meu relacionamento servir para que outras mulheres possam afirmar seu direito de amar, então a exposição faz algum sentido.

Como sua companheira, Marina Iris, que também é militante, participa de sua luta para que o crime de Marielle não fique impune?

Em primeiro lugar, não é uma luta só minha. É de toda a sociedade. Marielle nos deixou um legado coletivo de organização política, de afeto e de luta por justiça social. Marina é uma força da natureza. Uma mulher que eu e muitas pessoas admiramos pelo trabalho e pela militância. Antes de ser minha companheira, ela é uma artista admirável, uma militante incansável, reconhecida nas ruas e nos movimentos sociais. E isso não começou após o assassinato da Marielle. Marina é militante desde a adolescência. Nos conhecemos há alguns anos, ainda na época da campanha da Marielle. Marina, inclusive, colaborou na construção da campanha. No comecinho, ela estava fazendo show na Alemanha e gravou de lá a parte da letra que compôs para incorporar no jingle. Assim também como teve colaboração com a “mandata” da Marielle ativamente. Mas há pouco tempo nos aproximamos. E desse lugar de profunda admiração por sua trajetória, sua generosidade, seu apoio, sua disposição e sua parceria, surgiu o amor. Marina, além de cantora “Voz bandeira”, como define nosso carnavalesco do coração Leandro Vieira (da Mangueira), é militante feminista negra, que sempre esteve e está na linha de frente das lutas sociais. Por isso Marielle a respeitava muito e tinha Marina como colaboradora política. Um novo relacionamento não significa uma saída do luto, mas uma parceria na luta. E Marina é apoio, abrigo e afeto.

Você acha que há uma patrulha? Você acredita que as pessoas façam algum tipo de julgamento sobre sua vida afetiva?

O que chamam de “patrulha” e “julgamento”, eu chamo de machismo estrutural e lesbofobia. Precisamos aprender a nomear para compreender as estruturas que nos oprimem. Tenho certeza de que se eu fosse um homem cisgênero e heterossexual eu não estaria vivendo essa situação hoje. Pelo contrário. Geralmente, as pessoas comemoram quando homens viúvos se relacionam com outras pessoas em seus relacionamentos heterossexuais. A sociedade é lesbofóbica quando anula a vida afetiva de uma viúva, que é mulher, é lésbica, é favelada. E é esse dispositivo de apagamento que anula a vida de muitas mulheres. O que existe é uma sociedade machista que procura interditar e condenar a sexualidade e a afetividade da mulher quando exercida livremente. Para nós, mulheres lésbicas, isso se evidencia como motivação de muitas violências e abusos. Existe, de modo geral, uma negação de nossos desejos e também uma fetichização da nossa sexualidade. Sou uma mulher sapatão favelada, sei qual é o preço de lutar também pela nossa felicidade estando nessa posição de afirmar a vida.

Marina Iris e Mônica Benício

No dia 14 de março, os assassinatos de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes completam dois anos, sem que se saiba o mandante e a motivação. Você costuma dizer que vive isso todos os dias. Como tem acompanhado os desdobramentos do caso? Você esteve recentemente com o ministro Sergio Moro, por exemplo?

A luta por Justiça para Marielle e Anderson é a prioridade da minha vida. Faço isso de muitas formas, no ativismo político, por exemplo.Eu acompanho as investigações o mais perto possível. Não só buscando diálogo com as instituições responsáveis, mas também de maneiras indiretas, porque, afinal, as investigações correm sob sigilo, embora a imprensa tenha mais acesso às informações do que as famílias. Junto com minhas advogadas pedi para ter acesso aos processos, mas só obtemos com parcialidade, o que é um absurdo. Defendemos que a investigação ocorra com a segurança e a imparcialidade necessárias para chegarmos às respostas. Eu já me reuni com ministros, embaixadores, já fui à ONU, à Comissão Interamericana. Estive em diversas cidades ao redor do mundo me reunindo com representantes políticos, pedindo apoio a entidades e instituições por todos os países por onde passei, para que pressionem e cobrem do Estado Brasileiro o andamento das investigações, a fim de identificar seus mandantes e as motivações. São quase dois anos de impunidade, e nós seguimos passando vergonha internacional por essa não resposta. Não haverá descanso enquanto essa pergunta não for respondida. Até lá, eu seguirei acompanhando, pressionando de todas as formas possíveis, pedindo apoio na luta em todas as partes do Brasil e do mundo, e não porque tenho coragem, mas porque tenho legitimidade para fazer e seguirei perguntando todos os dias “quem mandou matar Marielle?”.

Você tem feito vários posts nas redes sociais sobre seu novo relacionamento. E sempre teve uma posição de luta pelos direitos LGBTQ+. Como tem sido o seu trabalho nesse sentido?

Não se faz luta e transformação sem a afirmação do que se é. Esse é o ponto de partida. Sobre o que me tomou e me deu mais força nesses quase dois anos: venho percorrendo o mundo com o objetivo de denunciar a omissão do Estado brasileiro para responder quem mandou matar Marielle. Nessas agendas, conheci muitos movimentos sociais LGBTIs. Mundialmente, governos de extrema direita têm chegado ao poder com programas políticos de perseguição às mulheres, populações negra e indígena, LGBTI e imigrantes. No Brasil, não é diferente com o atual governo federal, que além de promover a censura, persegue, difama e violenta essas populações com o desmonte de políticas públicas específicas. Algo que me chamou a atenção é a articulação feminista dentro do movimento LGBTI, que nega as armadilhas liberais, capitalistas e coloniais, resgatando práticas comunitaristas e de formação de rede. E precisamos construir alternativas para lutar contra essa força internacional de mercantilização da vida. Meu corpo é político porque é impossível dissociar nossas vidas da política.

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