Desenvolvimento Social

Pesquisas reforçam como raízes africanas seguem vivas na cultura baiana

Mostra permanente da Casa do Benin, em Salvador — Foto: Bruno Concha/Assessoria

A presença africana na Bahia deixou marcas profundas que ajudam a definir o modo de ser do povo baiano. Esse legado ultrapassa expressões mais visíveis, como a culinária ou os ritmos tradicionais, e se manifesta em aspectos íntimos da vida cotidiana, desde a forma de organizar a família até o modo como se lida com temas como a morte e a espiritualidade.

A linguista e pesquisadora Yêda Antonita Pessoa de Castro, referência nos estudos das matrizes africanas no português do Brasil, destaca que os africanos não trouxeram apenas vocabulário, mas um conjunto de práticas e percepções que moldaram o comportamento social no país. Ela lembra que, apesar da popularização dos elementos de origem iorubá, grupos Daomé e, sobretudo, povos de tradição banto, vindos de diferentes regiões da África Central, também tiveram forte presença na formação cultural do Brasil.

Segundo Yêda, a Bahia recebeu o maior contingente de pessoas escravizadas durante mais de três séculos. Em determinados períodos, a população negra e mestiça superava numericamente a europeia no estado. Essa predominância impactou diretamente a construção de hábitos e celebrações que, ainda hoje, fazem parte da rotina baiana. A pesquisadora cita como exemplo o consumo de comidas feitas com dendê durante a Sexta-Feira Santa, prática que remete a antigos rituais africanos relacionados à morte e ao culto aos antepassados.

Essa fusão de referências se manifesta também em tradições como as da Irmandade da Boa Morte, no Recôncavo Baiano, onde mulheres preservam ritos católicos entrelaçados com práticas afro-brasileiras, reforçando a memória da população escravizada e a devoção construída historicamente por essas comunidades.

Para Yêda, a identidade brasileira nasce justamente desse cruzamento de influências africanas, europeias e indígenas, que reorganizam formas de pensar, crer e viver. Ela defende que, no campo religioso, não existe exatamente “sincretismo”, mas uma convivência entre sistemas de crença que acabaram por constituir um modo próprio de religiosidade, profundamente marcado por essa mistura.

Uma troca que atravessa o Atlântico

As marcas da diáspora africana no Brasil, embora fundamentais para a cultura nacional, carregam o peso da violenta história da colonização e da escravização. Para muitos pesquisadores, compreender essa relação como um processo de troca, e não de mão única, é uma forma de reconstruir esse passado sob uma nova perspectiva.

A professora e artista Paola Barreto, da Universidade Federal da Bahia, observa que a influência cultural não acontece apenas no sentido África → Brasil. Em seu trabalho com criadores da diáspora africana, ela percebeu que elementos brasileiros também retornam ao continente e se incorporam ao cotidiano de diferentes comunidades. Como exemplo, aponta o consumo da mandioca brasileira, conhecida como garri em países como Benim e Costa do Marfim, além da adoção de palavras e costumes que ganharam novos significados do outro lado do oceano.

Essas vivências inspiraram Paola a coordenar o projeto Ocupa Casa do Benin, fortalecendo o diálogo entre Salvador e o país africano por meio de exposições e intercâmbios culturais, ampliando o alcance das narrativas compartilhadas entre as duas regiões.

A pesquisadora reforça que pensar as conexões entre África e Brasil ajuda a compreender a formação da identidade nacional e amplia as discussões sobre reparação histórica, justiça social e as pautas do Novembro Negro, sempre em diálogo com as lutas dos povos indígenas. Para ela, reconhecer que o fluxo cultural acontece nos dois sentidos é essencial para garantir que artistas e pesquisadores africanos também possam revisitar suas histórias por meio do Brasil.